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Taxidermia

Conto Adulto - Flávia Côrtes

 

 

Ao som de Strauss, limpo a bancada de trabalho, ainda respingada de sangue e restos biológicos, e preparo o material que será utilizado. Gosto de ter tudo sempre à mão. Pinças, bisturi, tesoura, algodão, agulha e linha. Verifico novamente o termômetro da câmara de resfriamento. Com o dial selecionado para congelamento rápido, a -40ºC, não deve demorar muito para que eu possa iniciar o procedimento. Estou próximo a criar minha obra prima, e para isso preciso estar preparado. Paro para apreciar os últimos espécimes finalizados e expostos na prateleira superior. Um rato que encontrei morto na garagem, um gato que atropelei por acidente e um coelho do mato que invadiu minha sala na semana passada. Tenho prazer e orgulho do que faço. Por mais que isso soe estranho, a taxidermia para mim é terapêutica, me faz desligar dos problemas, me aproxima da natureza, da vida. Sorvo um gole da taça de vinho tinto, afinal, é véspera de Natal.

Meu refúgio é esta oficina. Foi para cá que corri quando todos chegaram há algumas noites e o chalé ficou pequeno para tanto falatório, cantoria, discussões. Eles vieram como uma avalanche, e já chegaram incomodando, invadindo cada espaço como se fosse deles, o que me fez recordar por que evito contato com a família nos outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano.

Meu pai, homem austero e intransigente, chegou apoiado em minha submissa mãe. Atrás deles, minha irmã, uma versão feminina de meu pai, de braço dado com seu marido, um pau-mandado, desprovido de personalidade, seguidos por sua pequena prole de desagradáveis gêmeos. Por fim, meu irmão, um bon vivan, cujo único objetivo de vida é acabar com os recursos da família.

Eles não entenderam minha paixão pela taxidermia. Acreditaram ser coisa repentina, após minha trágica perda. Mas a taxidermia é uma arte, que engloba medicina, biologia, anatomia, química, artes plásticas, e até mesmo engenharia. É algo que me atrai desde garoto.

- Você precisa sair, voltar a viver - minha irmã foi a primeira a invadir minha oficina. - Não é porque ficou viúvo que tem de se encarcerar desta forma, neste chalé, com tudo exatamente como Laura deixou. Aquele quarto que você mantém trancado e intacto... Aquilo não é saudável! É como se ela não tivesse morrido. Entregue-me a chave que cuido de tudo para você – ela olhou em volta torcendo o nariz. – E esta oficina da qual você não arreda pé me dá arrepios. Todos estes animais empalhados, parecendo prontos a nos atacar. É assustador. Isso é uma casa dos horrores!

Passei os olhos pelas prateleiras com os pequenos animais que tão cuidadosamente tratei e aos quais imortalizei. Não compreendi onde estava o horror. Os gêmeos entraram correndo.

- Pedrinho! Não mexa aí! Você vai se cortar nessas coisas pontudas. Onde já se viu deixar facas e espátulas afiadas ao alcance das crianças, mano?

Eu possuía cinco vidros com fetos de tatu em diferentes estágios, conservados em formol. Estavam alinhados em uma das prateleiras. Um dos gêmeos – não sei diferenciá-los – tanto se pendurou para alcançá-los que derrubou o maior dos frascos, arruinando minha coleção.

- Paulinho! – ela puxou o menino pelo braço com tanta força que o desequilibrou e ele chutou o fundo do vidro já partido, mas que ainda guardava o feto intacto.

Senti o sangue ferver, mas não disse nada. O resto de formol escorreu pelo chão. O espécime, ainda sem sua couraça característica, de pele lisa, transparente, e desbotado pela ação química, deslizou facilmente pelo líquido, indo parar aos pés de minha irmã. Ela estremeceu e vomitou. A seguir, começou a gritar e a sapatear como alucinada, esmagando metade do feto com sua bota de grife. Meu cunhado apareceu, arrastando os gêmeos para fora, mas não sem antes deixá-los cuspir sobre o que restava do feto.

O processo de taxidermia é lento, mas pode ser acelerado com a interação de certos procedimentos e o uso de equipamentos sofisticados. A câmara de resfriamento apita, avisando ter finalizado o congelamento. Com o sangue já coagulado, é a hora de começar a retirada da pele. É necessário ser preciso. Minha habilidade cirúrgica conta muitos pontos nesta hora crítica. Corto as carnes em pontos estratégicos e desloco a pele, retirando-a aos poucos. Pode parecer estranho, ou até piada de mau gosto, um cirurgião como eu tornar-se taxidermista. Mas é o que me permitiu continuar vivendo.

Meu pai sempre teve dificuldade de entender as minhas escolhas de vida e chegou fingindo ser de paz.

- Filho, você irá trabalhar conosco na firma. Criei o cargo de diretor consultivo. Você não terá muitas obrigações, mas sua presença será obrigatória - contive-me para não perder a razão. – Você precisa deixar este chalé e essas recordações.

- Sabe que nunca quis trabalhar na firma - respondi. - Estou bem aqui, não preciso do seu dinheiro.

- Você sempre foi um desnaturado – ele explodiu. – Não estava falando de dinheiro. Respeitei quando sua mãe disse que você precisava de um tempo, mas já se passaram anos que ela se foi. E não irá voltar! – ele gritou, olhando com desprezo para um retrato de Laura na parede. - Você tem de seguir com a vida!

Meu trabalho é uma terapia, me faz esquecer esses momentos ruins. Retorno ao trabalho, separando os órgãos em recipientes esterilizados e descartando as vísceras. Com uma única incisão, tenho acesso ao fígado, pulmões e coração. Orgulho-me de minha precisão cirúrgica.

- Você precisa é cair na farra, afogar as mágoas na bunda de uma mulher gostosa – disse meu irmão, após algumas taças de vinho. – Se bem que você nunca teve muito jeito com mulheres. Não fosse por mim, não teria nem conhecido a Laura. E pensar que eu e ela tivemos todos aqueles momentos românticos em Paris antes dela me largar. Mas você sempre gostou de ficar com minhas sobras.

A raiva começa a tomar conta de mim novamente, mas coloco o último dos sete corações em seu devido jarro e o posiciono em local de honra na prateleira, ao lado dos outros. Aguardo um instante para saborear a visão do meu trabalho. Volto para a bancada de trabalho e retiro boa parte da carne. As poucas que sobram, trato com injeções de formol. Com cuidado, distendo os membros, preservando as características morfológicas. Lembro-me da conversa que tive com minha mãe.

- Meu filho, já está na hora de você conhecer outras moças e se interessar pela vida novamente. Viver assim, cercado por lembranças, só te faz sofrer. E eu quero te ver feliz - minha doce mãe sempre foi a única razão para que eu chamasse aquela horda de família.

O clima está ruim lá fora. O vento se intensifica e as janelas trepidam. Um trovão relampeja e a chuva fina começa a cair. Chuva de verão. Passageira. Como, felizmente, o são as visitas natalinas.

Volto ao trabalho, recheando os espécimes com algodão e dando-lhe as formas definitivas. Os olhos são os últimos detalhes. Normalmente utilizo olhos de boneca, mas como desta vez os espécimes são grandes opto pelas bolas de gude. Os olhos não podem ser naturais porque ressecam e afundam, ainda que tratados com formol.

Ainda um pouco assombrado pelas lembranças, mas com a sensação do dever cumprido, carrego, um a um, os sete corpos nos quais trabalhei nestes últimos dias até a sala de jantar. A casa está envolta no mais profundo silêncio, finalmente. O cenário está pronto, com os sete posicionados à mesa. Tomo mais um gole do vinho, enquanto a luz difusa de um relâmpago atravessa a janela e ilumina minha mais perfeita criação: os corpos imóveis de minha família. Eternizados pela taxidermia. 

Mamãe e papai lado a lado. Não quis separá-los, por achar de mau gosto. Deixei a cabeceira para meu irmão, imortalizado num sorriso irônico. Minha irmã e cunhado, os deixei frente a frente, ela ao lado dos pais, como sei que gostaria. Por fim, o que considero minha obra prima: os gêmeos, finalmente quietinhos, comportados, as bochechas rosadas, ao lado do pai.

Deixo a sala de jantar e retiro do bolso uma pequena chave, abrindo finalmente a porta do quarto, que precisei manter fechada até então. No pequeno sofá, diante da janela, repousa minha bela Laura, imortalizada. Toco-lhe levemente os lábios com os meus, num beijo devotado, e me aconchego ao seu lado, seus cabelos roçando de leve o meu rosto.

- Feliz Natal, meu amor! – brindei, sorvendo com vontade o resto do conteúdo da taça.

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