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Quiromancia

Conto Juvenil - Flávia Côrtes

 

 

 

Felipe abriu a porta e não havia ninguém. Só uma pequena caixa no chão. Abaixou para pegá-la. Examinou. Era leve, de um metal avermelhado, talvez cobre. Ricamente entalhada com símbolos desconhecidos, certamente muito antiga. Entrou e fechou a porta, sentando-se em uma das poltronas da sala para analisar melhor o estranho objeto.

Teve receio de abri-la, já ouvira histórias de verdadeiras desgraças enviadas pelo correio. Vírus mortais, venenos, explosivos... mas a caixa não tinha vindo pelo correio. Nem a campainha tiveram o trabalho de tocar, só algumas leves batidas sinalizaram que alguém estava à porta.

Decidiu abrir de uma vez o pequeno lacre. Definitivamente esperava encontrar qualquer coisa, menos um livro. Na capa, a silhueta de uma mão cortada por traços de diferentes cores. O título:

 

Quiromancia: A Arte De Ler As Mãos

 

Folheou o livro, já um tanto curioso. Um lampejo de memória aflorou em seu cérebro. Algumas semanas antes havia passado por um grupo de ciganas que insistiram em ler suas mãos. De família católica e muito supersticioso, negou veementemente, fechou os punhos e apertou o passo. Mas ela surgiu do nada, como se tivesse se materializado em sua frente, e segurou sua mão direita.

Costumava ver ciganas maltrapilhas e velhas, mas essas eram diferentes. A que segurava sua mão usava um bonito vestido turquesa, com véu da mesma cor cobrindo seus ombros. Seus cabelos castanhos e longos estavam soltos, emoldurando o rosto delicado.

Como se envolvido por força invisível, ele se deixou ficar. Um minuto de atenção que desse àquela linda garota não o faria mal algum. Além do mais, já ouvira falar que elas não cobravam por isso, era algo em que realmente acreditavam e sentiam-se obrigadas a fazer uma vez por semana. Implicações culturais que ele não compreendia, nem queria saber.

Ela estudava sua mão atentamente. Franziu a testa parecendo preocupada e pegou a outra mão para compará-las. Seus expressivos olhos verdes demonstravam terror.

- O que foi?! – ele se surpreendeu perguntando, realmente curioso.

Ela olhou para as companheiras como a buscar apoio. As outras se aproximaram e olharam também. Ele sentiu-se como uma cobaia de laboratório. Mesmo não entendendo nada daquilo, sabia que havia algo errado. Alguns passantes olhavam e isso o incomodava absurdamente. As ciganas trocavam olhares assustados.

- Vamos embora daqui! - ordenou a mais velha, puxando a garota que ainda segurava suas mãos.

Ele também queria ir embora, protestar, acusá-las de fraude, mas algo o impedia. Mantinha-se aguardando, angustiado.

- O que viram? Vou morrer, é isso?! – o suor escorria por sua camisa.

- Morrer?! Hahaha! – a velha soltou uma risada aterrorizante. – Ele pergunta se vai morrer! Vamos embora!

Elas já seguiam seu caminho quando ele segurou o braço da garota com firmeza.

- Espera! – implorou.

Ela se assustou. Olhava para o próprio braço como se estivesse contaminado.

- O que você quer? Tenho que ir.

- Por favor! – ele procurou suavizar a voz. - O que você viu?

Ela pareceu penalizada, segurou novamente sua mão, os olhos colados nos dele.

- Intocável é aquele que traz o selo do Eterno! – ela pronunciou como se lançasse um feitiço, deu as costas e saiu apressada.

O fino véu esvoaçou com o movimento brusco, roçando de leve o rosto do rapaz. Estava impregnado de perfume, tão misterioso quanto ela.

Juntando-se às outras ciganas, ela atravessou a rua movimentada e desapareceu por entre a multidão que ia e vinha afobada. Felipe ficou para trás. Confuso, como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo.

 

 

Agora aquele livro deixado em sua porta. Notou que algumas frases estavam grifadas com caneta fluorescente:

 

O estudo da Quiromancia é anterior à civilização moderna. Há milênios os Egípcios já a conheciam e se valiam dessa preciosa arte.

Manuscritos datados de 4.500 A.C.  foram descobertos no Egito e na Índia.

As principais linhas da mão são três. A do coração, a da cabeça e a da vida.

Quando a linha da vida é longa e sem correntes ou pontilhados, significa que a pessoa terá vida longa e próspera.

 

Mas afinal, o que teria aquela cigana visto que a assustara tanto? Ansioso por respostas, analisou a própria mão, seguindo as instruções do livro. Sua linha da vida era contínua e bem definida, atravessava como uma perfeita reta, pouco acima dos Montes de Vênus e da Lua, dividindo a mão ao meio. Não se encaixava em nenhum dos exemplos. Curioso, leu a última parte grifada em amarelo:

 

Mistérios Antigos - Na Idade Média surgiu uma nova ordem iniciática composta por homens de grandes poderes ocultos. Ainda que possuidores de cultura e conhecimentos elevados, seu maior desejo era alcançar a imortalidade. Após anos de busca, encontraram em um antigo papiro o segredo da vida eterna, mas dele só poderia usufruir aquele que já possuísse o selo do Eterno desde o seu nascimento. A linha da imortalidade.

 

A campainha tocou novamente. Ainda atordoado com a recém descoberta, ele colocou o pequeno livro sobre a mesinha de centro e foi atender a porta. A garota mais linda do mundo estava à sua frente. Cabelos longos, castanhos e encaracolados, muito bem cuidados. O corpo perfeito valorizado pelo jeans apertado e uma blusa que parecia prestes a explodir. Os expressivos olhos verdes pareciam querer falar através dos cílios curvos. Ele quase não a reconheceu vestida daquela forma.

– Intocável é aquele que traz o selo do Eterno! – ela falou.

- Você?! A cigana que leu minha mão no outro dia? – ele falava como uma metralhadora. - Espera! Foi você que me enviou o livro!

- Não vai me convidar pra entrar? – ela perguntou, de forma sensual.

- Ah... tá. Entra. – ele procurou não demonstrar o furacão que se fazia dentro dele. – Ainda não me disse o seu nome.

- Irina. – ela sorriu.

- Felipe. – ele estendeu a mão, mas ela passou direto.

- Você leu o livro? – ela caminhou até a mesinha e passou o indicador pela capa. Ele confirmou com um aceno. – Existe essa lenda entre nós... uma sociedade secreta muito antiga descobriu o segredo da vida eterna e criou um feitiço que só pode ser usado naquele que possui o selo do Eterno. – e apontando para a mão dele, completou. – Esse aí na sua mão.

Os olhos dele brilharam de forma indecifrável.

- Tenho uma proposta a te fazer. – ela revelou.

- Que tipo de proposta? – desconfiado, ele permanecia de pé, sem vontade alguma de sentar.

- Eu posso te dar a vida eterna, se você também me der algo em troca.

Ele sabia que haveria um preço. Sorriu debochado e sentiu-se à vontade para sentar.

- O que te faz pensar que eu deseje a vida eterna?

- E quem não desejaria? – ela parecia surpresa.

- Posso saber como é que você vai fazer isso?

- Simples. Para que o feitiço se realize, deve ser pronunciado por uma iniciada. Alguém assim... como eu. – ela concluiu, sorrindo.

- E o quê você leva em troca?

- Quem realiza o feitiço, terá juventude e beleza enquanto viver.

- Só isso? Eu deixo você dizer o tal feitiço e você ganha tudo isso? O que te impediu até agora? Por que precisa de minha permissão?

- Porque tem um pequeno detalhe.... – ela pareceu indecisa. - Você terá que se casar comigo.

- O quê?! Você é louca!

- Só assim o feitiço se realiza. Não fui eu que fiz as regras.

Ele gargalhou e ela pareceu ofendida.

- Estou falando sério. O problema é que o tempo é curto. Quando aquele que possui o selo toma conhecimento de sua condição, é preciso que o feitiço se realize antes da lua seguinte. Ou seja, você tem menos de 24 horas para se decidir.

- Por que não me procurou antes, então?

- Demorei a encontrá-lo. – ela justificou. - Minha tia é muito supersticiosa e acredita em uma antiga lenda que diz que aquela que se aproxima do selo do Eterno pode ser corrompida. Por isso tentou me afastar de você naquele dia. Nas últimas semanas passei todos os dias pelo local em que nos conhecemos até finalmente vê-lo na tarde de ontem, voltando para casa. Não foi difícil seguir alguém tão distraído como você.

- Ora! Não tenho porque me preocupar em andar atento o tempo todo.

- E então? O que me diz? – ela perguntou. As mãos na cintura, desafiadora.

Ele não precisou pensar muito. Não sabia se acreditava ou não em tudo aquilo, mas achou melhor arriscar. A possibilidade de tornar-se imortal despertava em seu íntimo sentimentos estranhos. Sua vida pacata e sem sentido mudaria drasticamente. Já imaginava as possibilidades que teria, todas as coisas que poderia realizar. E um casamento não significava nada, ainda mais sendo cigano. Não convidaria nenhum parente ou amigo. Ninguém precisaria saber. Afinal, tratava-se apenas de uma troca. Ela lhe daria a imortalidade e ele a juventude e a beleza intocável que ela tanto desejava. Era realmente um bom negócio. A garota parecia ingênua e fácil de manipular. Tão logo se casasse, se livraria dela e iria viver sua vida. Não queria ficar preso a uma só garota. Principalmente agora que poderia viver para sempre e ter todas as garotas que desejasse.

O casamento se realizou na noite seguinte. Com todos os místicos ritos ciganos, os quais ele desconhecia os profundos significados. Realmente havia muito que ele não conhecia sobre aquela cultura e aquela gente. Jamais imaginara que uma festa cigana poderia ser tão divertida e sofisticada.

Ela estava radiante, destoando com o ar de preocupação que sua velha tia trazia estampado no rosto. Nem sinal dos pais ou outros parentes, apenas um grupo seleto de amigos. Ele não estranhou, tão pouco se importava. Só pensava que naquela mesma noite se tornaria imortal.

Estava tão tranquilo que exagerou na bebida. A última coisa de que se lembrava era um afiado punhal prateado passando pelo seu pulso e pelo de Irina, os dois se unindo em laços de sangue e o beijo doce da mais bela cigana.

Acordou em completa escuridão. Tentou se virar e não conseguiu. Tateou ao redor e se percebeu em um local estreito e úmido. Poucos centímetros o separavam das extremidades do que parecia um corredor horizontal. Sentiu claustrofobia, tentou rastejar, mas as saídas estavam fechadas para todos os lados. Percebeu um objeto ao seu lado. Era uma pequena lanterna. Animou-se. Apertou o botão e aguardou ansioso que seus olhos se adaptassem. Descobriu, para seu desespero, que estava trancado em uma caixa apertada. A umidade vinda de fora intensificava o cheiro da madeira. Acima de sua cabeça encontrou um bilhete colado por fita adesiva. Trêmulo, já imaginando do que se tratava, desdobrou o papel perfumado e leu o seu conteúdo.

 

Querido Felipe,

Seu destino é viver eternamente. E poderia ter sido brilhante ao lado de uma mulher como eu. Mas, infelizmente não será possível. Esqueci de mencionar que para ter a juventude e beleza intocadas, aquela que realiza o feitiço precisa, assim como as viúvas negras, livrar-se do seu marido...

Como já deve imaginar, você está em um caixão. Enterrado a três andares no subsolo de uma construção abandonada há quase um século. Ninguém irá ouvir seus gritos e lamentos. Descanse em paz, meu amor! E aproveite as poucas horas que lhe restam de luz. Tive o cuidado de escolher a menor lanterna, com a  menor das baterias.

Boa eternidade para você.

Com amor,

Irina.

 

Ele sentiu seu coração imortal parar de bater por um breve instante. Como desejaria ter um ataque cardíaco. Naquele momento qualquer desgraça definitiva era bem vinda. De que adiantaria agora a imortalidade, tão desejada, se estava condenado para sempre aquele lugar escuro, sombrio e úmido no fundo da terra?

Muitos metros acima da superfície a bela cigana deixava a antiga construção sem olhar para trás.

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