Distante, de mim mesmo
Cresci com este vazio, sem saber quem era meu pai. Dele, herdei apenas um livro antigo e o primeiro nome. Numa época em que o amor e a liberdade eram os dogmas da juventude, minha mãe viveu um grande amor. No entanto, assim como surgira, ele desapareceu.
Ela nunca se recuperou. Tal qual um fruto amargo, que é dispensado do lote, ela, que era do mundo, retirou-se da sociedade e viveu isolada. Dizem que era bela e talentosa. Essa mãe, não conheci.
A mãe de minha memória era calada, perturbada e confusa, totalmente ausente. Mas quando a natureza derramava-se em cores, ela saía cedo e passava horas diante de um jasmineiro branco, olhar perdido no tempo.
Minha infância foi tranquila, sem grandes acontecimentos que justifiquem narração. Enfadei-me muito cedo daquela vida de interior, da condição de filho da louca da cidade. Mal cheguei a maioridade e parti, sem sequer dizer adeus. Não era dado à sentimentalismos. Outra herança de meu pai desconhecido, capaz de deixar o filho à própria sorte, nos braços de uma desvairada.
Saí de casa na madrugada. Não levava muita coisa, duas mudas de roupa e um exemplar de O Estrangeiro, de Camus. Herança de meu pai.
Um mundo novo se abria para mim e eu estava disposto a mergulhar-me nele até o passado se desfazer em fragmentos de memória.
Ajeitei-me como pude. Lavei privadas e quintais até surgir uma vaga na universidade local. Fui contratado como vigia. O salário era uma verdadeira fortuna, se comparado aos anteriores. Aos poucos me acomodei. Desenvolvi o gosto pela leitura durante noites insones, vigiando o campus, e tornei-me assíduo da biblioteca.
Com o tempo, aquilo me pareceu pouco. Decidi retomar os estudos e não foi difícil conseguir diminuição da carga horária. Consegui uma vaga na universidade, com uma bolsa de estudos que mantinha meus poucos gastos.
O tempo e a maturidade trouxeram a saudade de minha mãe e fui visitá-la. Ela estava mais louca do que nunca. Aparentemente minha partida agravara-lhe o estado. Desconhecendo meu paradeiro, os vizinhos não encontraram alternativa senão interná-la num hospício.
Fui até lá de coração tomado pelo remorso. A encontrei sentada no gramado, sob um pé de jasmim em flor. Ela não me reconheceu. E ainda confundiu-me com aquele a quem eu jamais perdoaria.
– Otávio, meu amor, eu sabia que você ia voltar. Dei a nosso filho o seu nome, mas ele foi embora, como você naquela noite.
Minha mãe estava envelhecida, apenas os olhos verdes eram os mesmos. Eu a ajudei a levantar e a abracei, tomado de afeto por aquele ser pelo qual nutria sentimentos contraditórios. Percebi que em sua insanidade ela me amava. Senti no peito uma dor profunda. Eu também a abandonara. Beijei de leve sua testa, depois afastei-a e a olhei nos olhos:
– Sou eu, mãe. Lembra?
–Nosso filho ainda não nasceu, Otávio. Sou muito nova para engravidar. Tenho que terminar a Belas Artes, viajar o mundo... vem comigo?
Saí de lá perturbado. Caminhei por muito tempo, sem rumo definido. Peguei o último ônibus de volta. Não tardaria a amanhecer. Decidi caminhar um pouco junto ao lago.
Os primeiros raios de sol tocaram de leve em meu rosto e despertaram a natureza ao redor. Notei uma moça na grama, concentrada em pintar uma tela apoiada nos joelhos. Aproximei-me lentamente, fascinado pelo contraste que o sol fazia em sua figura. No quadro, um jasmineiro em flor. As flores muito alvas pareciam sair da tela e misturar-se às verdadeiras. Meu corpo a sombreou e ela virou-se. Nossos olhares se cruzaram e foi como um reencontro. Trocamos poucas palavras.
– Você ainda não disse seu nome – apoiei o cotovelo na cama, enquanto contornava seus lábios com o dedo.
– Tália – ela disse, mordiscando meu dedo. Fiz uma careta. – Não gostou? É uma das nove musas.
– Lindo, como você. Embora eu duvide que seja real, assim como você.
Ela gargalhou alto. Um riso delicioso.
– Está duvidando de suas faculdades mentais?
– Talvez – eu me retraí, aquela referência à loucura me incomodava.
– Nome artístico. Não preciso de mais - e voltou a me beijar.
– Não quer saber meu nome? – insisti.
Ela ergueu os olhos cor de esmeralda de um jeito travesso.
– Não, Romeu. O que é um nome? Se a rosa não se chamasse rosa não teria o mesmo perfume?
Ela era livre, encantadora. Sonhava morar em Paris, expor sua arte, ser aclamada pela crítica. Nunca falamos do passado, só vivíamos o momento e nada mais. Esquecemos do mundo.
– Naqueles dias ela criou intensamente. Foram os dias mais incríveis de minha vida.
– Alugamos um quarto, num prédio junto ao lago. Ela pintava e eu observava. A mistura das cores, o jeito que ela mordia os lábios em concentração.
– Decidimos viajar juntos. Não precisávamos de muito. Paris era generosa com os artistas. Na noite anterior eu disse Eu te amopela primeira vez.
– E adormeci.
Acordei em meu antigo apartamento. Não lembrava de como cheguei ali. Confuso, corri para encontrá-la. Nosso prédio parecia abandonado há anos. O apartamento estava vazio. Julguei enlouquecer. Teria sido mesmo real?
Por anos tentei encontrá-la, sem sucesso. Estava tão obcecado e temendo constatar minha própria loucura, que nem fui ao enterro de minha mãe, ao saber de sua morte.
Fui a muitas exposições, na esperança de encontrá-la, até ver seus quadros em uma delas. Uma placa dizia tratar-se de peças de um colecionador, de uma artista dos anos 60. Fiquei indignado! Haviam roubado os quadros dela. Procurei o curador, expus a situação, ameacei processo. Ele me olhava confuso.
– O senhor chegou a visitar o final da exposição?
A pergunta me surpreendeu e o segui até lá. Havia uma foto mais recente da artista e, com ela, o estopim de minha loucura.
A foto e o nome eram os de minha mãe, Maria Alice Menalt.
Encontro-me agora neste mesmo hospício onde a deixei apodrecer sozinha por tantos anos. Apenas meus cabelos brancos indicam que o tempo passou.
A morte se aproxima e sinto-me extremamente calmo. Eu, que tanto temi terminar num hospício, agora estou em paz, pois tanto me faz estar aqui ou em outro lugar, distante que estou de mim mesmo.